sexta-feira, 22 de março de 2013

A Gaia Ciência §§ 2, 3, 4


A Gaia Ciência §2
Nietzsche inicia o segundo aforismo de seu prólogo (1886) para a obra A Gaia Ciência (1882) abordando a relevância da sua saúde na criação de sua filosofia. Dado que no aforismo anterior o filósofo apresentava o período em que surge o livro que introduz com este texto – e atribuía a ele um caráter de esperança renovada e embriaguez da convalescença –, questiona-se sobre o “que temos nós com o fato de o sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?”. Assim, se coloca em terceira pessoa: seria este Nietzsche do texto aquele de 1882 ou o de 1886? Fica claro, aqui, que Nietzsche vê o ser humano, e no caso a si mesmo, como algo fugaz, que está em um constante processo de modificação, e que, ao escrever sobre suas obras passadas, é como se estivesse lendo outro autor, com outra saúde. A relação entre filosofia e saúde está inscrita entre as questões mais atraentes para um psicólogo, alega o filósofo, tendo em vista que “desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa”.
            Com isto, Nietzsche assume a inevitável pessoalidade da filosofia, algo que nos remete à obra Além do bem e do mal, escrita no mesmo ano dos prólogos, em que considera toda filosofia como sendo a confissão de seu autor. Esta perspectiva da filosofia como algo pessoal também remete ao período em que Nietzsche viveu, a saber, de uma efervescência das possibilidades abertas pela ciência à filosofia – como, por exemplo, de entender o comportamento a partir de estudos científicos. Nietzsche continua sua argumentação no prólogo apresentando duas formas de origem da filosofia: a primeira, em que as deficiências filosofam, e a segunda, em que as riquezas e forças o fazem. Refere-se aos autores da primeira forma de filosofia como aqueles que necessitam da sua filosofia, “seja como apoio, tranqüilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si”, e aos da segunda forma como aqueles para os quais a filosofia é apenas um luxo, ou “no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos”. 
            Tem-se aqui claramente um dos pontos mais marcantes para uma leitura naturalista de Nietzsche, a saber, da indissociabilidade entre alma e corpo, não sendo possível desta maneira se pensar uma alma imortal desligada do corpo mortal. Com isso, surgem alguns possíveis questionamentos com relação a esta perspectiva nietzschiana: até que ponto a fisiologia influencia na “alma”? Os pensamentos seriam completamente influenciados pelo corpo? A supremacia seria do corpo, ou do espírito? Tal perspectiva também poderia acarretar um problema grande como o do perigo de se cair em uma eugenia. No entanto, o próprio prefácio daria um argumento contra uma crítica neste sentido, pois como veremos no §3, para Nietzsche há uma necessidade da doença, na medida em que esta traz um aprofundamento daquele que a sofre. De sorte que a doença surge como algo que pode trazer contribuições à filosofia, mas sendo importante que esta supere a doença.
            Ainda que a filosofia possa surgir da doença, mas também da força, Nietzsche diagnostica que talvez a maior parte dos pensadores da história da filosofia tenham construído seus pensamentos baseados em suas crises. Surgiria, desta forma, o questionamento das conseqüências para o pensamento de uma tal sujeição da filosofia à doença. Para Nietzsche, o corpo doente impeliria o espírito ao sossego, brandura, remédio, e conclui assim que:

Toda filosofia que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende negativamente o conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora, permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo.

             Com isto, Nietzsche está criticando uma má-compreensão do corpo, fundada em um “inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade”, que pode ser encontrada na filosofia metafísica. Para o historiador e psicólogo, as “insânias da metafísica” seriam preciosas indicações, sintomas do êxito ou fracasso do corpo. Por fim, encerra o aforismo apontando para a expectativa de que um médico filosófico (aquele que se dedicaria à saúde de um povo, época, raça ou mesmo da humanidade) algum dia pudesse afirmar a suspeita de Nietzsche de que o filosofar não teria suas questões voltadas à busca da “verdade”, mas sim à saúde, futuro e, numa clara referência à vontade de poder, para o “poder, crescimento, vida”.

A Gaia Ciência §3
No terceiro aforismo de seu prólogo, Nietzsche ressalta que não é ingrato em relação ao período de doença pelo qual passou. Segundo ele, a instabilidade de sua saúde lhe trazia vantagens que outros que gozavam de força não teriam como alcançar. Assim, se tornaria questionável se a doença era realmente dispensável “para nós”. A grande dor seria o liberador do espírito, enquanto mestre da grande suspeita. Isto quer dizer que a dor desligaria os pensadores de sua confiança, de “tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade”. De tal maneira, a dor ocasionaria o aprofundamento (algo que Nietzsche entende como diferente de aperfeiçoamento), pois a ela é possível que se oponha o orgulho ou diante dela se gere um retiro para o “Nada oriental – denominado Nirvana –, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se, apagar-se”. Estes exercícios sobre si mesmo nos levam à questão de como dominar a si próprio e ainda interrogar-se? E em relação ao perspectivismo nietzschiano, como manter o ponto de interrogação e ainda ter o domínio sobre si? Nietzsche entende que, após o período de doença, se perde a confiança na vida, tendo esta mesma se tornado um problema, dado que passa a ser questionada “profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente”. No entanto, o amor à vida ainda é possível, como “o amor a uma mulher da qual se duvida”.
Haveria, assim, uma arte da transfiguração, que seria a própria filosofia, associada à vida de um filósofo que percorreu diversos estados de saúde, em que seu estado é transposto, a cada vez, “para a mais espiritual forma e distância”. A filosofia, então, nada teria a ver com algum acesso direto ao verdadeiro, mas de colocar a própria vida em forma de pensamento, não sendo assim possível uma distinção entre corpo e alma ou entre alma e espírito:

(...) não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo.

            Encontramos aqui, portanto, um aspecto da filosofia entendida como aliada à fisiologia, na medida em que a filosofia seria escrita com o sangue. Nota-se também que Nietzsche se refere ao leitor como se este fosse também um filósofo. Há uma preocupação nos prólogos de 1886 que é a de definir o seu leitor ideal, aquele que estivesse capacitado à leitura de sua obra. Neste sentido, pode-se entender que a sua linguagem metafórica também seria uma forma de selecionar aquele leitor que Nietzsche desejava ter, o que tivesse vivências como as suas.

A Gaia Ciência §4
Como forma de encerrar o último dos prólogos escritos para suas obras anteriores, Nietzsche aponta novamente para o retorno da enfermidade. Quando fala de cura, está se referindo a uma cura num âmbito maior do que a doença de um corpo no sentido específico, a saber, da cura da humanidade. Entende esse retorno da enfermidade em que “voltamos renascidos (...) mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria”, como a origem de uma nova forma de lidar com a vida, com mais inocência, mas também marcada por um refinamento.
Neste sentido, é crítico do romantismo, e também do romantismo do conhecimento, pois “fere os ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora”. Assim, entende que há a necessidade de outra arte, oposta ao romantismo: uma arte para artistas, que seja “ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial”, sugerindo um retorno aos gregos. Estes, na leitura de Nietzsche, adoravam a aparência, permaneciam na superfície: “eram superficiais – por profundidade”, sendo requerido para isto uma jovialidade, um aprendizado do esquecimento, do não-saber.
O que Nietzsche sugere é que estas pessoas profundas, entre as quais se inclui e também ao seu leitor, não procurarão mais desvelar aquilo que por boas razões permanece oculto, ou seja, deixarão de lado a busca da verdade. O filósofo faz uma referência ao poema “A imagem velada de Sais”, de Schiller, em que um jovem egípcio é acometido por algo ruim quando desvela a verdade. E desta forma fica claro o seu entendimento da necessidade de se “respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas”.
“Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola”

Sobre a imagem:
Edvard Munch (1863 – 1944) teve sua vida profundamente relacionada com doenças – como, por exemplo, por ter perdido sua mãe e sua irmã devido à tuberculose – o que se reflete diretamente em sua obra. Em 1919 pinta o seu “Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola”, em que retrata a si mesmo, com fisionomia semelhante àquela do seu mais famoso quadro (“O Grito”, em que representa seu sofrimento por uma vida marcada por doenças), convalescente da gripe.

Resumo efetuado por José Luiz Votto