quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Aforismo 456 - Uma virtude em devir. Aurora.


Reunião do dia 05 de Outubro
Texto do mestrando Rafael Dias Ferreira.

Aforismo 456 – Uma virtude em devir

A “honestidade” (Redlichkeit) é o assunto deste aforismo. A ocorrência do termo, em Aurora, perfaz doze unidades textuais, cujos registros transitam entre acepções correntes e especiais (cf. § 84, § 91, § 167, § 192, § 255, § 293, § 370, § 418, § 456, § 482, § 536, § 550). Dessa maneira, ao lado de definições que referem ideias de “probidade”, “honradez”, “adequação”, “pureza” e “castidade”, Nietzsche contrapõe entendimento conceitual específico para essa, assim nomeada, “virtude”, não sem estranhamento por parte do leitor, devido à economia do filósofo quanto a exposições do gênero. Formalmente, a estratégia de apresentação está em suspender o desfecho do tema, a qual se observa em outros parágrafos de toda a sua obra. Nessa direção, o aforismo começa por problematizar a unidade entre virtude e felicidade no pensamento antigo e no cristianismo, tomada, por conseguinte, como inevidente. A seguir, o argumento é o de que apesar dessa síntese não ter origem na honestidade, não é, por outro lado, fruto da má consciência (schlechtes Gewissen), pois o anseio que movia seu caráter de veracidade transcende inclinações egoístas e se aproxima da glorificação divina através de práticas virtuosas. Ainda que se possa suspeitar da ironia de Nietzsche nesse ponto, afirmações dessa natureza – tais como: “Busquem antes o Reino de Deus, e todo o resto lhes será dado!” (Mt, 6:33) – são tomadas como verdades atemporais, apesar de todas as evidências contrárias a estas, com isenção de remorso moral e religioso. As “pessoas de valor”, contemporâneas ao filósofo, ainda estariam ligadas a esse nível de veracidade, mas sem preocupações mais profundas com vínculos necessários por trás do cultivo da virtude, o que lhes possibilitaria, por seu desinteresse, preocuparem-se menos com a verdade. Nietzsche termina a seção com a seguinte proposta: uma vez que seu aparecimento é recente, não constando no mundo antigo e na era cristã, a “retidão”[1] pode ser promovida ou inibida. Desse modo, Nietzsche trata o conceito, sobretudo, em seu significado de honestidade para consigo mesmo (cf. M/AA, § 167), isto é, como “jogo da verdade” („Wahrspielerei“) (cf. M/AA, § 418). Portanto, como indicado no texto do parágrafo, o uso dá-se a partir de concepção eminentemente moderna do vocábulo, ainda que entendida em processo formativo, ao que é preciso lembrar que, na língua clássica francesa, com a qual Nietzsche estava familiarizado por intermédio da literatura moralista, a honestidade (honnêteté) representava conjuntos de valores da moral social de estirpe nobre, a qualidade do “honnête homme” mundano, agradável e distinto, pelas maneiras e pelo espírito: sinceridade no trato social, propriedade no decoro e honradez por bom nascimento, como nesta passagem, lembrada por Pascal, do Discours de la vraie honnêteté, do chevalier de Méré: “‘Se alguém me perguntasse em que consiste a honestidade, eu diria que não é outra coisa que sobressair em tudo o que diz respeito aos atrativos e aos decoros da vida [em sociedade]’”[2] (Méré, citado in PascalPetite éd. Brunschvicg, 1909: 116). Assim sendo, com o aforismo, Nietzsche propõe espécie de indicação para reforma de princípios, que norteariam o assentimento ou a recusa a uma versão por vir da honestidade.

Indicações bibliográficas

Nietzsche, F. W. Aurora. Trad., notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
Méré (Antoine GOMBAUD, chevalier DE). Discours de la vraie honnêtetéInPascal, B. Pensées et opuscules. Ed. M. Léon Brunschvicg. Paris: Hachette, 1909.


[1] Variante de “Redlichkeit”, na tradução por Paulo César de Souza, que peca, contudo, em termos de cuidado conceitual, visto que “retidão” pode ser compreendida como consonância à justiça.
[2] “« Si quelqu'un me demandait en quoi consiste l'honnêteté, je dirais que ce n'est autre chose que d'exceller en tout ce qui regarde les agréments et les bienséances de la vie. »”